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Ser Corporate Philosopher no Brasil



“Sextou!” e “Segunda, mais uma semana, vamos lá!” são expressões que denunciam insatisfação com o trabalho e o traduzem como algo sacrificante, difícil, ruim, desgastante. Quantas vezes não as ouvimos, ou mesmo as pronunciamos? Algo está errado. O trabalho é próprio da ação humana, passamos mais de um terço de nossas vidas em atividades que, em maior ou menor grau, são essenciais para a sociedade, e para nós, qual seja nosso trabalho.

Cabe destacar que ser feliz é um processo de autoconhecimento, de tomada de consciência de suas singularidades (suas potencialidades e seus limites) que, por sua vez, está ligada à gratidão, à esperança, às experiências satisfatórias, à capacidade de lidar com dificuldades. No trabalho, as pesquisas apontam que a felicidade está relacionada a dois aspectos: resultados (o reconhecimento de suas ações) e relações (entre colaboradores, com a chefia, relativas ao sentimento de pertença de grupo). Nesse sentido, a remuneração corresponde apenas a 12% do que motiva os colaboradores a ir trabalhar. Ser valorizado, poder aplicar ideias criativas, ter equilíbrio entre vida pessoal e vida profissional, poder trabalhar em um ambiente que promove relações autenticas e que permite o desenvolvimento pessoal são muito mais importantes e exemplos de salário emocional. Em suma, o sujeito é feliz no trabalho quando vê sentido em sua ação (em tempos, inclusive, de fragmentação das atividades com a terceirização), quando tem um propósito, alicerçado em projeto de vida e práticas do cuidado de si.

Sob este foco atuará o filósofo na empresa, o Corporate Philosopger, especificamente na cultura organizacional. Este profissional terá como base os valores, a missão e os princípios da instituição, possibilitando que estes sejam incorporados efetivamente. A partir de diferentes métodos e teorias filosóficas, o CP proporá questões que passam desapercebidas, especialmente entre as lideranças, tendo em vista que ações se tornam automáticas na correria do dia-a-dia: a reflexão, assim, pode tomar o lugar do fazer mecanizado, ora tornando os processos mais ágeis, ora propondo soluções para problemas. As práticas ESG (social, ambiental e governança), alinhadas às demandas contemporâneas de diversidade e inclusão, sustentabilidade, inovação, ética e responsabilidade social, reputação e marca, compliance e transparência, estão entre as atribuições do CP, além da felicidade na organização.

No Brasil, as empresas ainda não veem “com bons olhos” um filósofo atuando internamente. O filósofo se restringe ao campo acadêmico e escolar, atuando como professor ou pesquisador. Quando muito, são chamados para alguma palestra ou entrevista na mídia.

Há pouco mais de seis meses, de forma pioneira, iniciei os trabalhos como Corporate Philosopher, no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), especificamente no Fórum da Comarca de Caxias do Sul. Até onde sei, sou o único CP no Brasil. No Fórum, criei o Flow – Programa de Gestão da Felicidade no Judiciário. Internamente, é visto como “Projeto Piloto sobre gestão, liderança, comunicação e felicidade no trabalho que poderá ter abrangência estadual”.


É aplicação in loco de minha pesquisa de doutoramento, realizada na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, que investiga a função do filósofo nas organizações, a partir do cargo de Corporate Philosopher, e sua atuação na felicidade no ambiente de trabalho, inédito no Brasil. Destaque-se que o Rio Grande do Sul é um dos estados mais prósperos do Brasil, e a cidade de Caxias do Sul, o segundo maior pólo metalomecânico do país, com inúmeras empresas. No campo jurídico, o TJ-RS e, especificamente a Comarca de Caxias do Sul, são referências em inovação.


Após um diagnóstico inicial, com a aplicação de um instrumento com cerca de 50 questões, realizado no primeiro mês de trabalho, o Flow – Programa de Gestão da Felicidade no Judiciário foi iniciado em 21 de setembro de 2022.


São objetivos do Programa:

* Criação de políticas de Salário Emocional, feedbacks, bem-estar e cuidado de si

* Desenvolvimento de liderança e habilidades gerenciais

* Desenvolvimento de mecanismos que aumentem conexão, reconhecimento, inspiração, transparência, confiança, desenvolvimento pessoal, autonomia, leveza e alegria.

* Alinhamento da cultura organizacional às práticas ESG

* Gestão de marca e reputação, ética e responsabilidade social, sustentabilidade e inovação.


Cuidado de si e autoconhecimento são pilares do Flow. O Fórum de Caxias do Sul congrega quase 350 trabalhadores, entre magistrados, servidores e estagiários. Atualmente, 8 turmas, com cerca de 10 pessoas cada, aderiram ao Programa e se reúnem quinzenalmente. Há também uma turma de magistrados.


O si mesmo, muitas vezes, é relegado a segundo plano, no ritmo frenético, automatizado e caótico do cotidiano. Esquecemo-nos de nós mesmos. Fixamos nosso olhar nas inúmeras telas. Visualizamos, compartilhamos, "damos" like. Focamos na vida de outrem, deixamos de nos ocupar de nós mesmos. Cuidado de si é um olhar para aquilo que, muitas vezes, sufocamos, abafamos, ignoramos: nossa singularidade! Olhar para si, ocupar-se de si mesmo, refletir sobre quem sou (quais minhas forças de caráter, meus potenciais, minhas limitações, o que me impede de seguir pelo caminho da felicidade e do bem-estar), não requer, muito pelo contrário, que sejamos outro, apenas que cuidemos de nós mesmos sob outra perspectiva, outro ponto de vista... Eis um desafio necessário e urgente: cuidar de si para poder cuidar dos outros.


Em encontros coletivos, todas as turmas se reúnem e debatem também questões importantes ao grupo. Pautas como métodos e processos, práticas ESG, ambiente interno e infraestrutura, políticas de salário emocional, feedbacks, comportamentos estimulados e desestimulados, desburocratização, dentre outras, são debatidas.


Em alusão às campanhas mensais de saúde, os integrantes do Flow foram convidados a vestirem rosa, azul, vermelho, branco. O resultado, nesses últimos meses, foi a união de esforços, de singularidades, em ações de responsabilidade social. Uma realidade que vai aos poucos mudando, rumo a sentimentos mútuos de pertença grupal e identidade institucional.


Em outubro, o Flow recebeu a advogada e neurocientista comportamental e política, Jeanine Cristiane Benkenstein, que palestrou sobre “Neurociências e perfis comportamentais”. Benkenstein surpreendeu os participantes com a aplicação do DISC, uma metodologia de avaliação comportamental, para identificar os perfis dominantes de uma pessoa. O método DISC compreende que existem quatro perfis de comportamentos que predominam entre os indivíduos: dominância, influência, estabilidade e conformidade.


Em novembro, foi a vez do médico Fabio Pasqualotto, renomado urologista e especialista em reprodução humana, que palestrou sobre Saúde Masculina. Além do câncer de próstata, outros temas foram debatidos: ISTs, reposição hormonal, testosterona, qualidade de vida, infertilidade, disfunção erétil... dúvidas foram sanadas, e a palestra fluiu livremente, descontraída e com muitas orientações, para homens jovens e maduros. Todos os homens participantes do Flow foram presenteados com uma roupa íntima. A intenção foi mostrar que SER HOMEM não é ser viril, corajoso, destemido, determinado, focado, protetor... ou não APENAS isso, mas também sujeito que cuida de si, que se ocupa da saúde física e mental, que busca conhecer a si mesmo, suas fragilidades e suas forças, e se desenvolve, tornando-se si mesmo. Da mesma forma, em dezembro, as mulheres participantes do Programa foram presenteadas com um mimo, um lenço, confeccionado em parceria com o SENAI Nilo Peçanha.


Em janeiro, o Flow recebeu a psicóloga, psicanalista e perita judicial Véra Marta Reolon para palestrar sobre Saúde Mental, destacar da importância do Cuidado que devemos ter com nossas emoções, nossos sentimentos, nosso bem-estar. A pandemia deixou muitos rastros, traumas, restos... especialmente no que tange à saúde mental. Trancados em nossas casas, em frente às telas, isolados de relacionamentos pessoais e colegas presenciais, sofremos calados, sem o outro que escutava, olhava, tocava…


Ficamos angustiados, ansiosos, depressivos, impacientes, repletos de questionamentos sobre a vida e a morte (estampada nos noticiários). Por sermos sociais, o Cuidado de si interiorizado também ficou de lado. Sequer temos noção das consequências, a longo prazo, que a pandemia trará às subjetividades das crianças e adolescentes, Sujeitos em formação. Em relação aos adultos, basta observarmos a quantidade de farmácias que abriram nos últimos anos.


Em março, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, foi promovida a palestra "Empoderamento feminino e autocuidado", ministrada pela servidora Cláudia Teixeira Velho. E, não bastasse a lição de vida que a Claudinha deu, de superação, de sucesso, de cuidado de si, fizemos sorteio de diversos serviços oferecidos pelos nossos conveniados: sessão de acupuntura, de massagem com pedras quentes, de psicanálise, henna e design de sobrancelhas, aula com personal trainer, sessão de fotos corporativas…


Aliás, uma das pautas do Flow também foi a assinatura de convênios para os trabalhadores da Comarca: hoje são mais de 20 serviços, profissionais e estabelecimentos parceiros. Criamos também grupos de WhatApp, para Servidores e Estagiários, visando melhorar a comunicação, que era deficitária.


"Festa da Firma": parece algo bobo, sem muito propósito, além da confraternização anual, próxima às festas de fim de ano. Mas nunca antes o Fórum de Caxias do Sul tinha feito uma dessas. A primeira aconteceu em 2022, patrocinada pelos magistrados. Essa ação que, embora singela, pontual, foi significativa e muito valorizada pelos servidores e estagiários. Mais uma ação do Flow, que pretende potencializar felicidade e bem-estar no ambiente de trabalho. Que alegria ouvir apenas feedbacks positivos de um pessoal que tão pouco se conhece (diante da correria do dia-a-dia e do acúmulo de trabalho), além de “fechados” em salas sem comunicação entre si, as chamadas “varas” judiciais, e que pôde festejar 2022.


Sabe-se que uma política de valorização e reconhecimento dos trabalhadores é fundamental para as organizações, especialmente as mais fechadas, racionalizadas, departamentalizadas. Em uma organização pública, reconhecer "tempo de serviço" é reconhecer tempo de dedicação à sociedade, aos grupos e pessoas que necessitam de um serviço essencial.


A partir da criação da comissão especial Cuidando do Servidor, formada por mim e mais cinco trabalhadores, decidiu-se certificar os quinquênios dos servidores, ou seja, daqueles que completaram, em 2022, cinco, dez, 15, 20, 25 e 35 anos dedicados ao Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul. Aproveitamos a realização do Happy Hour mensal, outra iniciativa do Programa, para homenageá-los perante os colegas. A homenagem foi em forma de Certificado de Reconhecimento, algo simples, porém Simbólico de algo que é estruturante em uma instituição: valorizar as pessoas, afinal ELAS SÃO A ORGANIZAÇÃO.


Poder implementar o Flow, com tantas mudanças organizacionais visíveis, me enche de orgulho! É a cultura da empresa em transformação, diariamente!


Rio Grande do Sul (Brasil), 24 de abril de 2023.


Guilherme Reolon de Oliveira

Corporate Philosopher e Consultor em Gestão da Felicidade Organizacional,

Doutorando em Filosofia (PUC-RS)

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