Desde os primórdios da existência que o ser humano terá procurado o bem-estar, e desde que se começou a questionar sobre as coisas do mundo, se terá perguntado o que seria esse estado de “plenitude” indescritível, o qual designou por felicidade, pelo qual tanto anseia e luta, e que mantém como objetivo durante toda a vida.
A felicidade será porventura um dos mais antigos temas a que a se dedicou a filosofia (ocidental), sendo transversal a eras e culturas, e quase nos atrevemos a dizer que algum filósofo terá deixado de a mencionar direta ou indiretamente. E outras áreas do conhecimento, da psicologia à economia, da ciência política às neurociências, dedicam à felicidade atenção especial e uma boa parte do seu labor. No entanto, é com frequência que vemos em artigos sobre a felicidade a referência à dificuldade (diríamos, à impossibilidade) de se conseguir uma definição abrangente, consensual, do que é a felicidade (mesmo no âmbito de cada uma daquelas disciplinas, a felicidade não é uma só, existem variações de conceito). E esta ausência de definição leva a que o termo felicidade, por facilidade e vício de linguagem, seja utilizado para nos referirmos a conceitos distintos, embora com alguma proximidade, como sejam prazer, bem-estar, satisfação, vida boa, alegria.
Se em todas as épocas o ser humano considerou a felicidade como um objetivo (nesta ou noutra vida), é na contemporaneidade que a felicidade ganha uma particular relevância e presença (ver a publicidade), dando azo ao surgimento de uma indústria avaliada em biliões de dólares. Hoje, a felicidade vende mais do que nunca. Paradoxalmente, o êxito de vendas não se deve à sua abundância, mas, precisamente, porque se considera ser de difícil obtenção. E mesmo depois de encontrada, é rapidamente consumida, sendo necessário retomar continuadamente o processo de busca. Este foco na felicidade deriva, possivelmente, do facto de o ser humano sentir a procura da felicidade como um jogo de lotaria: as probabilidades são baixas, muito pouca gente é contemplada, mas o prémio é enorme, vale a pena apostar.
Mas, será assim tão importante sabermos o que é a felicidade, conseguirmos uma definição de felicidade? E porque é tão difícil uma resposta à pergunta O que é a felicidade?
Este artigo não tem por finalidade dizer o que é a felicidade, mas fornecer sustentação para uma atitude de pensamento que nos permita a libertação da ditadura da felicidade e de uma certa obrigação cultural, social e económica de encontrarmos a felicidade, e deixemos de batalhar por conseguir uma definição de felicidade. Sem, contudo, – e poderá parecer um paradoxo - deixarmos de querer ser felizes.
O modo mais usual de colocar a questão sobre o que são as coisas é: O que é isto? Esta formulação terá por base duas razões que reputamos de relevo: a) O facto de o ser humano colocar a tónica no querer saber o que é a coisa em si; b) O facto de ser humano se ter alienado do mundo, adotando uma postura de observador externo sobre as coisas, o que leva a que coisifique tudo aquilo que observa. Assim, com toda a naturalidade, o mesmo tipo de formulação de questionamento terá sido aplicado à felicidade e perguntou (e ainda hoje se pergunta) O que é a felicidade? E ao perguntar pela felicidade de forma coisificada, transformou-a num objeto (talvez daí uma certa necessidade em materializar a felicidade, procurando-a através de bens que se podem adquirir e possuir), por isso, exterior ao sujeito. Ora, se há algo que se pode consensualmente assacar à felicidade, é que é iminente e intrinsecamente subjetiva (por isso não objetificável), é algo interno e interior ao indivíduo, dele fazendo parte integrante. Logo, dir-se-ia que a pergunta o que é a felicidade? enviesa a questão e distorce a realidade, já que o sujeito está excluído da pergunta, o indivíduo devém um mero observador/investigador.
Outras formas de indagar sobre a felicidade
Se é certo que a linguagem é uma construção do cérebro humano, também não deixa de ser reconhecido que a estruturação cerebral do modo de pensar não esteja dependente do modo como a linguagem é utilizada. Ou seja, o modo linguístico como estruturamos uma pergunta pode ter influência no modo como direcionamos a procura da resposta. É costume dizer que as perguntas já encerram em si parte da resposta e que a insistência na mesma pergunta (na mesma formulação), normalmente, conduz à mesma resposta (ou ausência dela). Será que a dificuldade em obter a resposta está numa dificuldade inicial de formular a pergunta mais conveniente? Poderá a alteração do modo de perguntar sobre a felicidade levar a respostas mais satisfatórias?
Uma outra pergunta possível é “O que é ser feliz?” Não é uma questão nova e existem duas grandes linhas de discussão: a) Uma, que diz que felicidade e ser feliz são conceitos distintos, pelo que as duas perguntas se referem a coisas diferentes; b) Outra, que a nova formulação é uma forma capciosa de contornar a questão, pois só sabemos sermos felizes se nos soubermos possuidores de felicidade, pelo que em última análise há necessidade de sabermos o que é a felicidade.
Independentemente de qualquer argumentação sobre a coincidência ou distinção entre felicidade e ser feliz, façamos uma breve analogia com algo que na vida damos, talvez, mais importância do que à felicidade: a saúde. O que é a saúde? Ora, diríamos que ninguém que deseje saber se é saudável, coloca a questão em abstrato o que é a saúde? (Diga-se que também não existe uma definição consensual do que é a saúde. Aliás, no quotidiano lidamos facilmente com inúmeros conceitos que não sabemos definir: arte, saúde, tempo, jogo, felicidade.) Antes se perguntará o que é ser saudável? Insistindo na analogia, optemos por substituir a pergunta o que é a felicidade? por o que é ser feliz?
A pergunta O que é ser feliz? (que pode até ser completada especificando o sujeito com exatidão, o que é eu ser feliz?) tem, quanto a nós, a vantagem (não despicienda e com efeitos práticos) de, em vez indagar por algo totalmente exterior ao indivíduo, posicionar o sujeito no centro do questionamento, pois o que na realidade se pergunta é sobre o que é este sujeito que é feliz. Quem pergunta é o sujeito, pergunta e responde sobre si próprio, passando a resposta a ser subjetiva. Assim, a questão, mesmo que acabe por providenciar conhecimento sobre a felicidade, inclui o sujeito e deixa de requerer uma resposta genérica sobre a felicidade, mas uma resposta particular sobre o indivíduo que é feliz.
Mas, dando mais um passo adiante, sugerimos, ainda, outra forma de perguntar: Ser feliz, o que é?”, à qual podemos também dar a forma Eu ser feliz, o que é?
Enquanto na passagem de o que é a felicidade? para o que é ser feliz? alterámos o foco da pergunta, já ser feliz, o que é?, à primeira vista, nada parece mudar na essência quanto a o que é ser feliz? A diferença óbvia e imediata, que diríamos de cariz meramente formal e notada apenas auditiva ou visualmente, é que numa versão da pergunta, “ser feliz” aparece no fim da frase, e noutra está no fim. Quase poderíamos dizer tratar-se de uma questão de estilo.
No entanto, o que é que este princípio e fim poderá, conceptualmente, diferenciar as duas? Será isso relevante e traduzir-se-á na prática em alguma factualidade?
Se tomarmos como boa a afirmação anteriormente feita de que a linguagem pode construir a estrutura de raciocínio, poderemos defender que o que é ser feliz? é uma pergunta mais consentânea com a ideia comum que temos de ser feliz: um estado que se busca e que emerge no fim de algo, normalmente de uma ação (sobretudo se se tratar de uma tarefa difícil) que visa um objetivo que é alcançado.
Pela mesma lógica de colocarmos o ser feliz de facto, na realidade, na mesma posição em que colocamos o termo na pergunta, então, “ser feliz, o que é?” passa a ter uma perspetiva de questionamento que indica que podemos ser felizes logo no início de qualquer ação. Antecipemos, não como consequência da ação que se inicia, ou se quer iniciar, mas como resultado de ações anteriores.
Recorramos a uma nova analogia, desta vez com a alimentação: quando despendemos energia para ingerimos uma refeição com o intuito de nos alimentarmos, aquela energia é proveniente de ingestões anteriores de alimentos e não daquela que estamos a executar no momento. E para nos alimentarmos, não basta mastigar e deglutir. É necessário metabolizar os alimentos e que sejam devidamente introduzidos na corrente sanguínea.
Ser feliz é uma acumulação feita de, ao longo do tempo, uma “alimentação” de ações, factos e eventos felizes, os quais “metabolizamos” racional e emocionalmente e servem de “energia feliz” para novas ações, pois, tal e qual a alimentação, o ser feliz necessita de novas e futuras ingestões que nos façam felizes. Ser feliz é estado presente, construído com perceções do passado, projetando o futuro.
Concluindo: Como notaram, este artigo não busca definições, quer de felicidade, quer de ser feliz, procura, antes, a) Questionar o próprio modo de questionar, mostrando possibilidades de olhar o ser-se feliz de outro ponto de vista, incentivando a que cada qual dê o seu toque pessoal na busca do conceito de ser feliz; b) Chamar a atenção para a necessidade de libertação de um conceito estereotipado de felicidade, que nos é induzido culturalmente, sobretudo no que diz respeito à felicidade como objeto material, baseada em sentimento de posse e localizada no futuro.
Ser feliz, o que é? remete-nos para um “estado” em que se deixa de procurar algo coisificado, distante no espaço e/ou no tempo, e nos direciona antes para algo que está próximo no espaço (nada está mais perto do que algo dentro de nós próprios) e próximo no tempo (temporalmente, nada mais próximo do que o presente).
Carlos Machado
Investigador do Projeto "Perspetivas sobre a Felicidade. Contributos para Portugal no WHR (ONU)
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